Sunday, November 05, 2006

Divagações na Metrópole - 10 minutos no metrô

Naquela tarde típica de primavera para o proletariado paulista (leia-se metrô abarrotado, com pessoas e objetos ensopados, resmungando "Ai, essa chuva... o tempo estava bom até agora tarde! Vai entender esse tempo mauluco, meu deus..."), ela olhava ao redor e tentava decifrar a personalidade daquelas pessoas que a comprimiam contra a porta. Afinal, tem gente que é tão sabida, que olha nos olhos e fala "Você é de câncer, acertei? ". Mas com toda a sua cultura de botequim sobre horóscopos e essas coisas mais sensitivas, as coisas mais absurdas passaram por aquela cabecinha de vinte e poucos anos. E olha que essa idade não costuma ter um mentalidade tão fértil...

"Humm... esse cara é estilosinho: tatuado, converse no pé, mochila nas costas, alargador, mas com uma roupa bonitinha de trabalhar... No mínimo deve trampar como designer ou em alguma dessas empresas de informática e , com certeza, tá escutando rock. Ele não tem cara de EMO, então... deve ta escutando essas coisinhas novas britânicas. Pena que ele é baixinho e a mega aliança prateada na mão direita, tá reluzindo mais que uma dourada na mão esquerda: esse aí namora, pelo menos, há uns 2 anos...."

O trem abre as portas na estação seguinte e é impressionante como as pessoas se adaptam áquele estágio de inércia induzido. O tal do garoto comprometido, faz mil e uma acrobacias para que uma menina esbaforida, bem mais baixa e volumosa que ele, se encaixe naquele emaranhado de mãos, braços, pernas, peitos, bundas grandes, mochilas, sacolas e cheiros de todos os tipos...

"Nossa, que cara de mau! Ela deve trabalhar em alguma coisa ligada á vendas ou cobrança ali no centro e não deve achar que trabalho traz realização profissional, só dinheiro e encheção de saco dos patrões. Com certeza ela sabe todos os seus direitos trabalhistas e deve colocar no pau qualquer empresa que se meta a besta com ela.Aliás, acho até que os engraçadinhos e engraçadinhas com ela não têm vez... Mas será que essa calça grudada, esse cinto grande e essa blusa decotadissima e sufocante não colaboram pro seu mau humor? Acho que nem o brinco de dançarina do ventre e faixa colorida no cabelo alegram a tornam mais simpática..."

Na outra parada, o vagão continuaria no mesmo estado, se um casal não se entrelaçasse e ocupasse o mínimo de espaço que ainda restava diante da porta. "Uhhh, amor... conseguimos - smack na boca - Me abraça mais um pouquinho que a gente fica bem", disse o homem para a mulher.

" É, o amor deve ser realmente lindo e superar todos os obstáculos. A menos que eles tenham se conhecido por essas bandas e nesssas mesmas condições... E não é que eles combinam?! Tá certo que o desastre na cama é quase previsível: ela não parece ser nem um pouco sexy e tem uma certa aprência de sujinha. Não como os hippies da paulista, mas uma sujeira natural. Ele, sem a menor pinta de comedor nem de come quieto. É até estranho imaginar que um dia ele tenha sido punheteiro! Huum.. pensando melhor, ele tem cara daqueles caras de chat... e ela também! É fato: se encontraram num shopping um dia desses, depois de teclarem numa sala por aí, e viram que têm várias coisas em comum e se apaixonaram... inclusive se sintonizaram na horizontal. Que sejam felizes!"

A viagem da garota continua aperdatíssima e cada vez mais sufocante. Ela já não sabe mais se está se sustentando nos próprios pés ou alguém está fazendo isso por ela. Numa inspeção rápida e minuciosa, ela percebe...

"Putz, onde eu vim me meter! Tudo bem que não tinha tanto lugar pra ir, mas ficar embaixo dos braços de um gordinho com pizzas na camisa, ninguém merece!Ainda bem que meu poder de abstração das coisas e meu mp3 são maiores que tudo... O cara deve ser bancário e tem orgulho de mostrar que trabalha no Banco do Brasil, exibindo crachá e bolsa personalizada, além da camisa azul e amarela. Deve ser gente boa, mas a respiração ofegante e aquele olharzinho "sou tímido, mas se mexer comigo eu topo tudo" poderiam acabar com qualquer amizade. Aliás, ele não tem cara de muitos amigos. Parece bem caseiro, do tipo que tem família pequena e amigos ecléticos que entendem o dance como sinônimo de música eletrônica e o sertnejo como redenção em qualquer casório. Ai, é melhor eu tentar ir um pouco mais pra frente..."


Já diz o velho ditado que coração de mãe, sempre cabe mais um. Couberam mais quatro... e daqueles filhos bem barulhentos e desalmados...

"Como é possível! Esses daí são daqueles que querem aparecer á qualquer custo. Já chegam empurrando, gritando e ai de quem olhar torto pra eles. É capaz de cuspirem em alguém! A camiseta surradaa , o cabelo molhado e o perfume a la AVANÇO não negam um dia duro de trabalho em alguma fábrica da região. Mas isso não diminuiu o bom humor:têm piadas e frases feitas na ponta da língua. Aposto que para cada dia da semana devem resmungar algo diferente! Mulher...eita bicho bão, eles devem pensar. É lógico que baranga eles expulsam com alguma musiquinha brincalhona. Mas eles mal sabem falar direito... Devem ganhar pouco, só que têm família pra cuidar lá no fim da cidade. Engraçado como eles não demonstram se importar com isso! Eles é que estão certos... já estão prontos para um cerveja no bar e o trabalho no dia seguinte..."

ESTAÇÃO SÉ... ACESSO Á LINHA 1, AZUL. DESEMBARQUE PELO LADO ESQUERDO DO TREM.

Em questão de segundos o garoto do rock, a menina mau humorada, o casal enlaçado, o gordinho franzino e os "quatro felizes do jeito que sou" são expulsos do vagão, como acontece em parto normal. A tal da garota, que divagou pela vida de pessoas tão diferentes, com toda sua educação, tenta não empurrrar ninguém. Impossível... o máximo que conseguiu fazer foi olhar para os outros, dar aquela risadinha de "isso não muda nunca e é um absurdo", ajeitar sua roupa, mudar a música do mp3 e se preparar psicologicamente para conhecer tipos mais diferentes na nova jornada que ainda a aguardava.

Mas dessa vez seriam uns 10 minutos a mais de desconforto!

6 comments:

Patty Marie Jones said...

hahahaha

ótima a constatação de como o casal esquisito se conheceu. A internet tomou o espaço dos antigos Disk Amizade... menos brega pelo menos.

Várias vezes, quando tô imaginando a vida das pessoas e uma delas olha pra mim, me vem à cabeça: nossa será que ela sabe o que eu tô pensando? Paranóia, eu sei... mas é possível, não? rsrs

Último comentário: dizem que para você não ser atacado por uma cobra vc deve ficar a uma distância de pelo menos um quarto do tamanho dela (cobra). Quando vc ultrapassa essa distância, está invandindo o seu espaço. Fazendo uma relação com o mundo animal, no metrô é incrível a quantidade de pessoas que você tem direito a atacar.

Conclusão: muito boa destilada de veneno, Lana!!! rsrs

Bjinhs

Lucy Jones said...

Ai... esse casal da internet me lembra do público dos mangás... pra quem eu trabalho! hahaha

Nossa, nunca fiquei pensando tanto assim no metrô... vou começar a reparar mais pra ter boas histórias pra contar!

Amiga, amei esse texto... muito cotidiano!

bjinhos

Rafael Leal said...

A sua reflexão acinzentada sobre essa gigantesca cobra antropofágica que sangra a cidade por baixo da terra me lembrou, como um enorme déja-vu, dalguma conversa de bar perdida entre uma panturrilha dolorida e uma conta ridiculamente barata.

Bom texto!!!!
Beijocas!

Anonymous said...

O que será que todas essas pessoas pensam de você?

http://bernasworkshop.blogspot.com
http://miguelarepreciso.blogspot.com

Anonymous said...

O pior de tudo é quando no metrô, vazio, às 23h, um ser resolve encostar a bunda na sua cadeira.

Isso é pior que tudo...

Lina Jones said...

adorei o texto! mt divertido, ri demais!
bem q observo tbém os tipos no metrô, mas nunca pensei em tantos detalhes, em algum momento sempre me disperso do q faço, acontece..hehe..